domingo, 12 de abril de 2020

A peste - Camus. Trechos


“Se você quiser filosofar, escreva romances” (Albert Camus)

O absurdo é universal.
 (“É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro,
quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe.”) Daniel Defoe (Tradução de Albert Camus)

O calor úmido dessa primavera nos fazia desejar os ardores do verão. Na cidade, construída em caracol sobre um planalto, quase fechada para o mar, reinava um morno torpor. No meio dos seus longos muros caiados, entre as ruas de vitrines poeirentas, nos bondes de um amarelo sujo, as pessoas sentiam-se um pouco prisioneiras do céu. Só o velho doente de Rieux dominava a asma para se regozijar com esse tempo. p. 20

nunca alguém será livre enquanto houver flagelos. p. 24

O médico lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas em um só dia. Dez mil mortos
são cinco vezes o público de um grande cinema. p. 24


Digamos apenas que não devemos agir como se metade da cidade não corresse o risco de morrer, porque senão ela morrerá de fato. p. 31

A rua animava-se, e uma exclamação surda e de alívio saudou lá fora o instante em que as luzes se acenderam. Ríeux foi até a varanda e Cottard o seguiu. De todos os bairros em redor, como em todas as noites na nossa cidade, uma brisa ligeira trazia murmúrios, cheiros de carne grelhada, o zumbido alegre e perfumado da liberdade que enchia pouco a pouco a rua, invadida por uma mocidade ruidosa. p. 35

— Fala-se em epidemia, doutor. É verdade?
— As pessoas falam sempre, é natural — respondeu Rieux.
— Tem razão. E depois, quando tivermos uma dezena de mortos, vai ser o
fim do mundo. Não era disso que precisávamos. p. 36

uma das consequências mais importantes do fechamento das
portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam preparados. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dentro de alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem. p. 39.

Em épocas normais, sabíamos todos, conscientemente ou não, que não há amor que não se possa superar e aceitávamos, no entanto, com maior ou menor tranquilidade, que o nosso permanecesse medíocre. Mas a recordação é mais exigente. E, muito logicamente, essa desgraça que nos vinha do exterior e que atingia toda uma cidade não nos trazia apenas um sofrimento injusto, com que teríamos podido indignar-nos: levava-nos a incitar mais sofrimentos em nós mesmos, fazendonos, assim, consentir na dor. Essa era uma das maneiras que a doença tinha de desviar a atenção e de baralhar as cartas. p. 43

peste nada mais era para eles do que uma visita desagradável que havia de partir um dia, já que tinha vindo. p. 54.

Na sala, alguém resfolegou como um cavalo impaciente. Depois de uma curta pausa, o padre continuou, num tom mais baixo: “Lê-se na Legende dorêe que no tempo do Rei Humberto, na Lombardia, a Itália foi devastada por uma peste tão violenta que os vivos mal chegavam para enterrar os mortos. Essa peste castigava sobretudo Roma e Pavia. p. 55

princípio, as pessoas tinham aceito estar isoladas do exterior como
teriam aceito qualquer outro inconveniente temporário que apenas
perturbasse alguns de seus hábitos. Mas, subitamente conscientes de uma espécie de sequestro, sob a tampa do céu em que o verão começava a crepitar, sentiam confusamente que essa reclusão lhes ameaçava toda a vida e, chegada a noite, a energia que recuperavam com o frescor os lançava por vezes a atos de desespero. p. 58-59.

Era essa uma das grandes revoluções da doença. Em geral, todos os nossos concidadãos acolhiam o verão com alegria. A cidade abria-se então para o mar e derramava sua mocidade nas praias. Nesse verão, pelo contrário, o mar próximo estava interditado e o corpo já não tinha direito às suas alegrias. Que fazer nessas condições? p. 65.

O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. p. 75

Os que ali viviam até então não puderam deixar de considerar essa medida como uma peça que lhes havia sido pregada especialmente e, em todo caso, pensavam, por contraste, nos habitantes dos
outros bairros como homens livres. Estes, por outro lado, nos seus momentos difíceis, consolavam-se ao imaginar que outros eram ainda menos livres que eles. “Há sempre alguém mais prisioneiro que eu”, era a frase que resumia então a única esperança possível. p. 96

Mas, a partir do momento em que a peste se apossou realmente de toda a cidade, então seu próprio excesso provocou consequências bastante cômodas, pois ela desorganizou a vida econômica e suscitou assim um número considerável de desempregados. Na maior parte dos casos, estes não permitiam recrutamento para os técnicos, mas os trabalhos grosseiros encontraram-se extremamente facilitados. p. 100

A peste suprimira os juízos de valor. E isso se via pela maneira como ninguém mais se ocupava da qualidade do vestuário ou dos alimentos que se compravam. Aceitava-se tudo em bloco p. 105

Nosso amor, sem dúvida, estava presente ainda, mas simplesmente era inutilizável, pesado, inerte, estéril, como o crime ou a condenação. Não era mais que uma paciência sem futuro e uma espera obstinada. p. 105

como todos nós que não morremos ainda da peste, ele sente efetivamente que sua vida e sua liberdade estão todos os dias às vésperas de ser destruídas. p. 111


— Diz isso sinceramente? Tarrou encolheu os ombros.
— Na minha idade, é preciso ser sincero. Mentir é cansativo demais. p. 116

Passada a tempestade, ele se descontraiu um pouco, a febre pareceu retirar-se e abandoná-lo ofegante num patamar úmido e envenenado, em que o repouso já se parecia com a morte. p. 120

Sem dúvida, e mais uma vez, não se deviam imitar os cristãos da Abissínia de que falara. Não se devia sequer pensar em imitar os persas atingidos pela peste, que lançavam seus bandos sobre os piquetes cristãos, invocando o céu em altas vozes, para pedir que mandasse a peste a esses infiéis que queriam combater o mal enviado por Deus. p. 127

 Mas todos esses sinais da estação não podiam fazer esquecer que os
cemitérios estavam desertos. Nos outros anos, os bondes se enchiam do cheiro enjoativo dos crisântemos e as mulheres em bandos dirigiam-se aos locais onde estavam enterrados os seus para cobrir-lhes de flores as sepulturas. Era o dia em que se tentava compensar junto ao morto o isolamento do esquecimento em que fora mantido durante longos meses. Mas, naquele ano, ninguém queria mais pensar nos mortos. É que, precisamente, já se pensava demais nisso. E não se tratava mais de voltar a eles com um pouco de pesar e muita melancolia. p. 132

“Era o dia em que se tentava compensar junto ao morto o isolamento do esquecimento em que fora mantido durante longos meses. Mas, naquele ano, ninguém queria mais pensar nos mortos. É que, precisamente, já se pensava demais nisso. [...] Já não eram os abandonados junto dos quais os vivos vão justificar-se uma vez por ano. Eram intrusos que se desejava esquecer. [...] todos os dias eram dia dos mortos” (CAMUS)
Sim, continuei a ter vergonha, aprendi isso — que estávamos todos na peste -, e perdi a paz. Ainda hoje a procuro, tentando compreendê-los a todos e não ser o inimigo mortal de ninguém. Sei apenas que é preciso fazer o necessário para deixar de ser um empestado e que só isso nos permite esperar a paz, ou, na sua falta, uma boa morte. É isso que pode aliviar os homens e, se não os salvar, pelo menos, fazer-lhes o menos mal possível e até, às vezes, um pouco de bem. p. 142

“Falta-me uma qualidade para ser um assassino razoável [...] Procuro ser um assassino inocente. Como vê, não é uma grande ambição” p. 142-143

O Natal daquele ano foi mais a festa do Inferno que a do Evangelho. As lojas desertas e privadas de luz, os chocolates falsos ou as caixas vazias nas vitrines, os bondes carregados de rostos sombrios, nada lembrava os Natais passados. p. 146.

Em todo lugar, era a mesma pausa, o mesmo intervalo solene, sempre o mesmo sossegar que se seguia aos combates, era o silêncio da derrota. p. 162.

Negavam tranquilamente, contra toda a evidência, que tivéssemos jamais conhecido esse mundo insensato em que o assassinato de um homem era tão cotidiano quanto o das moscas, essa selvageria bem definida, esse delírio calculado, essa prisão que trazia consigo uma pavorosa liberdade em relação a tudo o que não era o presente, esse cheiro de morte, que entorpecia todos aqueles a quem não matava. p. 166.

o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz. p. 173







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