“Se você quiser filosofar, escreva romances” (Albert Camus)
O absurdo é universal.
(“É tão válido
representar um modo de aprisionamento por outro,
quanto representar qualquer coisa que de fato existe por
alguma coisa que não existe.”) Daniel Defoe (Tradução de Albert Camus)
O calor úmido
dessa primavera nos fazia desejar os ardores do verão. Na cidade, construída em
caracol sobre um planalto, quase fechada para o mar, reinava um morno torpor.
No meio dos seus longos muros caiados, entre as ruas de vitrines poeirentas,
nos bondes de um amarelo sujo, as pessoas sentiam-se um pouco prisioneiras do
céu. Só o velho doente de Rieux dominava a asma para se regozijar com esse
tempo. p. 20
nunca alguém
será livre enquanto houver flagelos. p. 24
O médico
lembrava-se da peste de Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez
mil vítimas em um só dia. Dez mil mortos
são cinco vezes
o público de um grande cinema. p. 24
Digamos apenas
que não devemos agir como se metade da cidade não corresse o risco de morrer,
porque senão ela morrerá de fato. p. 31
A rua
animava-se, e uma exclamação surda e de alívio saudou lá fora o instante em que
as luzes se acenderam. Ríeux foi até a varanda e Cottard o seguiu. De todos os
bairros em redor, como em todas as noites na nossa cidade, uma brisa ligeira
trazia murmúrios, cheiros de carne grelhada, o zumbido alegre e perfumado da
liberdade que enchia pouco a pouco a rua, invadida por uma mocidade ruidosa. p.
35
— Fala-se em
epidemia, doutor. É verdade?
— As pessoas
falam sempre, é natural — respondeu Rieux.
— Tem razão. E
depois, quando tivermos uma dezena de mortos, vai ser o
fim do mundo.
Não era disso que precisávamos. p. 36
uma das
consequências mais importantes do fechamento das
portas foi a
súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam
preparados. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns
dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da
nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dentro de
alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana,
momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida,
viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem
ou de se comunicarem. p. 39.
Em épocas
normais, sabíamos todos, conscientemente ou não, que não há amor que não se
possa superar e aceitávamos, no entanto, com maior ou menor tranquilidade, que
o nosso permanecesse medíocre. Mas a recordação é mais exigente. E, muito
logicamente, essa desgraça que nos vinha do exterior e que atingia toda uma
cidade não nos trazia apenas um sofrimento injusto, com que teríamos podido
indignar-nos: levava-nos a incitar mais sofrimentos em nós mesmos, fazendonos,
assim, consentir na dor. Essa era uma das maneiras que a doença tinha de
desviar a atenção e de baralhar as cartas. p. 43
peste nada mais
era para eles do que uma visita desagradável que havia de partir um dia, já que
tinha vindo. p. 54.
Na sala, alguém
resfolegou como um cavalo impaciente. Depois de uma curta pausa, o padre
continuou, num tom mais baixo: “Lê-se na Legende dorêe que no tempo do Rei
Humberto, na Lombardia, a Itália foi devastada por uma peste tão violenta que
os vivos mal chegavam para enterrar os mortos. Essa peste castigava sobretudo
Roma e Pavia. p. 55
princípio, as
pessoas tinham aceito estar isoladas do exterior como
teriam aceito
qualquer outro inconveniente temporário que apenas
perturbasse
alguns de seus hábitos. Mas, subitamente conscientes de uma espécie de
sequestro, sob a tampa do céu em que o verão começava a crepitar, sentiam
confusamente que essa reclusão lhes ameaçava toda a vida e, chegada a noite, a
energia que recuperavam com o frescor os lançava por vezes a atos de desespero.
p. 58-59.
Era essa uma das
grandes revoluções da doença. Em geral, todos os nossos concidadãos acolhiam o
verão com alegria. A cidade abria-se então para o mar e derramava sua mocidade
nas praias. Nesse verão, pelo contrário, o mar próximo estava interditado e o
corpo já não tinha direito às suas alegrias. Que fazer nessas condições? p. 65.
O mal que existe
no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for
esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade. p. 75
Os que ali
viviam até então não puderam deixar de considerar essa medida como uma peça que
lhes havia sido pregada especialmente e, em todo caso, pensavam, por contraste,
nos habitantes dos
outros bairros
como homens livres. Estes, por outro lado, nos seus momentos difíceis,
consolavam-se ao imaginar que outros eram ainda menos livres que eles. “Há
sempre alguém mais prisioneiro que eu”, era a frase que resumia então a única
esperança possível. p. 96
Mas, a partir do
momento em que a peste se apossou realmente de toda a cidade, então seu próprio
excesso provocou consequências bastante cômodas, pois ela desorganizou a vida
econômica e suscitou assim um número considerável de desempregados. Na maior
parte dos casos, estes não permitiam recrutamento para os técnicos, mas os
trabalhos grosseiros encontraram-se extremamente facilitados. p. 100
A peste
suprimira os juízos de valor. E isso se via pela maneira como ninguém mais se
ocupava da qualidade do vestuário ou dos alimentos que se compravam.
Aceitava-se tudo em bloco p. 105
Nosso amor, sem
dúvida, estava presente ainda, mas simplesmente era inutilizável, pesado,
inerte, estéril, como o crime ou a condenação. Não era mais que uma paciência
sem futuro e uma espera obstinada. p. 105
como todos nós
que não morremos ainda da peste, ele sente efetivamente que sua vida e sua
liberdade estão todos os dias às vésperas de ser destruídas. p. 111
— Diz isso
sinceramente? Tarrou encolheu os ombros.
— Na minha
idade, é preciso ser sincero. Mentir é cansativo demais. p. 116
Passada a
tempestade, ele se descontraiu um pouco, a febre pareceu retirar-se e
abandoná-lo ofegante num patamar úmido e envenenado, em que o repouso já se
parecia com a morte. p. 120
Sem dúvida, e
mais uma vez, não se deviam imitar os cristãos da Abissínia de que falara. Não
se devia sequer pensar em imitar os persas atingidos pela peste, que lançavam
seus bandos sobre os piquetes cristãos, invocando o céu em altas vozes, para
pedir que mandasse a peste a esses infiéis que queriam combater o mal enviado
por Deus. p. 127
Mas todos esses sinais da estação não podiam
fazer esquecer que os
cemitérios
estavam desertos. Nos outros anos, os bondes se enchiam do cheiro enjoativo dos
crisântemos e as mulheres em bandos dirigiam-se aos locais onde estavam
enterrados os seus para cobrir-lhes de flores as sepulturas. Era o dia em que
se tentava compensar junto ao morto o isolamento do esquecimento em que fora
mantido durante longos meses. Mas, naquele ano, ninguém queria mais pensar nos
mortos. É que, precisamente, já se pensava demais nisso. E não se tratava mais
de voltar a eles com um pouco de pesar e muita melancolia. p. 132
“Era
o dia em que se tentava compensar junto ao morto o isolamento do esquecimento
em que fora mantido durante longos meses. Mas, naquele ano, ninguém queria mais
pensar nos mortos. É que, precisamente, já se pensava demais nisso. [...] Já não
eram os abandonados junto dos quais os vivos vão justificar-se uma vez por ano.
Eram intrusos que se desejava esquecer. [...] todos os dias eram dia dos mortos”
(CAMUS)
Sim, continuei a
ter vergonha, aprendi isso — que estávamos todos na peste -, e perdi a paz.
Ainda hoje a procuro, tentando compreendê-los a todos e não ser o inimigo
mortal de ninguém. Sei apenas que é preciso fazer o necessário para deixar de
ser um empestado e que só isso nos permite esperar a paz, ou, na sua falta, uma
boa morte. É isso que pode aliviar os homens e, se não os salvar, pelo menos,
fazer-lhes o menos mal possível e até, às vezes, um pouco de bem. p. 142
“Falta-me uma
qualidade para ser um assassino razoável [...] Procuro ser um assassino
inocente. Como vê, não é uma grande ambição” p. 142-143
O Natal daquele
ano foi mais a festa do Inferno que a do Evangelho. As lojas desertas e
privadas de luz, os chocolates falsos ou as caixas vazias nas vitrines, os
bondes carregados de rostos sombrios, nada lembrava os Natais passados. p. 146.
Em todo lugar,
era a mesma pausa, o mesmo intervalo solene, sempre o mesmo sossegar que se
seguia aos combates, era o silêncio da derrota. p. 162.
Negavam tranquilamente,
contra toda a evidência, que tivéssemos jamais conhecido esse mundo insensato
em que o assassinato de um homem era tão cotidiano quanto o das moscas, essa
selvageria bem definida, esse delírio calculado, essa prisão que trazia consigo
uma pavorosa liberdade em relação a tudo o que não era o presente, esse cheiro
de morte, que entorpecia todos aqueles a quem não matava. p. 166.
o bacilo da
peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos
móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos
lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para
desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria
morrer numa cidade feliz. p. 173
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